16.02.24

Cuidar dos doentes, investigar as doenças…


Na reunião da Sociedade Portuguesa de Neurologia, Espinho, 2002
Texto de Paula Coutinho

 Pediram-me para escrever “alguma coisa”, sem precisar bem sobre quê: sobre a minha vida, sobre o que fiz, sobre o tema cuidar e investigar talvez. Encontrar o equilíbrio possível entre a obrigação de debitar tudo aquilo que se fez de pressupostamente bom e o inevitável balanço pessoal que tal exercício comporta – de oportunidades falhadas e insuficiências bem reconhecidas – parece à partida uma aposta impossível. Deixem-me dar-lhes uma ideia.

Não me lembro por que razão escolhi Medicina, mas sei que foi uma escolha acertada: quase sempre me dei bem com ela. Gosto realmente muito de exercer clínica, da sua variedade, dos seus desafios, do contacto humano condicionado que a sua prática permite. Já sei bem por que escolhi Neurologia. Cresci numa casa cheia de livros policiais, e desenvolvi-me ao correr de raciocínios dedutivos ou indutivos, conforme os detectives. Pensei sempre que aprecio fazer Neurologia como de um problema policial: gosto de analisar e encadear factos, e encontrar o denominador comum, de juntar as peças do “puzzle” e fazer sínteses, de pesar decisões com alguns riscos. Aprecio muito também seguir o raciocínio dos outros e discuti-lo. Só nunca consegui ter o rigor dos livros.


A ver doente japonesa com paramiloidose, Kumamoto, 1987

Quando me aborrecia durante um curso de medicina particularmente cinzento (com raras e honrosas excepções), fui “pescada” nas aulas práticas de Neurologia e levada para o serviço do Dr. Corino de Andrade. Apesar do susto inicial, tornou-se rapidamente claro que estava a contactar um mundo diferente. O serviço de Neurologia do Santo António, com o Dr. Corino sentado à cabeceira da grande mesa da biblioteca discutindo todos os assuntos do mundo, ralhando, provocando, incomodando, sendo injusto, atento e estimulante, foi uma revelação. Ainda agora recordo, com enorme admiração, as reuniões mensais do serviço, à noite, em que era pedida opinião a cada pessoa sentada à roda da mesa – incluindo a mim, pequena estagiária clandestina, estudante de outro hospital. O serviço era então vivíssimo, cheio de pessoas novas e todas diferentes, com um “patrão” teimoso, temível, obviamente possuidor de uma espécie de génio pessoal e de direcção difícil de definir, feito de inteligência das situações, comunicabilidade e uma sabedoria universal, equilibrado e temperado (e bem preciso era para os principiantes) pelo Dr. João Resende, com a sua infinita paciência e impensável honestidade. Na altura foi o deslumbramento: deram-me doentes para cuidar e perguntaram a minha opinião todos os dias. Acabei o curso já a trabalhar na Neurologia, fiz o Internato Geral a tomar conta de meia enfermaria de Neurologia, trabalhei à tarde no laboratório de Neuroquímica. O serviço de então ficou sempre como uma espécie de modelo para mim, o que teve naturalmente alguns inconvenientes no futuro.


Equipa de Neurologia do Hospital Geral de Santo António, 1967

O segundo ponto afortunado foi a ida para Genève, no momento exacto. Propuseram-me de repente um lugar em Neuropatologia e lá fui, cheia de medo, ver mundo. Os quase dois anos de uma neuropatologia prática, feita de várias autópsias diárias, cortes de cérebro e exames histológicos de casos de todos os tipos, deram alguma consistência e segurança à Neurologia que começava a aprender. Se tivesse dúvidas, deixaram-me também bem claro que não gostaria de trabalhar num laboratório toda a vida. O período seguinte, de clinica neurológica, foi também muito bom: era uma prática diferente da do Porto, feita de trabalho intensivo, menos imaginativo talvez, mas executado com um grande rigor. Foi lá que aprendi a não parar no diagnóstico e tentar encontrar soluções possíveis para cada doente, mesmo que sem solução terapêutica. Pela primeira vez a Neurologia ultrapassou a fase “policial”, para se tornar numa especialidade bem articulada, em que há várias saídas desde que sistematicamente procuradas (e desde que existam algumas estruturas de apoio). Por isso nunca pude concordar com o comentário habitual sobre a Neurologia – “os-diagnósticos-são-muito-bonitos-o-pior-é-depois”, porque trabalhei num serviço que me ensinou a tratar cuidadosamente de todos os lados práticos que podem ajudar a resolver a situação dos doentes, mesmo quando má, e a assumir a responsabilidade pessoal e quase afectiva deles nas situações desesperadas.

A experiência de Genève, onde um ano se foi sucessivamente transformando em quatro, foi, por isso, muito boa. Atravessei, como todos os emigrantes sem protecção, situações difíceis, tendo passado de um serviço onde era quase mimada para um mundo de concorrência livre. Mas no meio, quase sem dar por isso, cresci: a Neurologia começou a articular-se e a fazer sentido na minha cabeça, descobri outra maneira, muito eficaz e igualmente apaixonante de a praticar. Depois, vinda de um sistema cheio de carreiras e concursos, saltei em quatro anos de assistente subdesenvolvida a chefe de serviço que podia substituir o professor nas suas raras ausências. Aprendi assim que dar precocemente grandes responsabilidades às pessoas é dos actos mais didácticos que se pode praticar. Aprendi outra coisa em Genève: que gosto muito e sou capaz de ensinar razoavelmente Neurologia, tornando-a tão atraente para os outros como é para mim. O serviço estava povoado de estagiários, quer estudantes, quer médicos de outras especialidades. Vários desviei para Neurologia e ainda agora quando lá vou os encontro com algum orgulho. Genève era nessa altura como um porto de mar: no hospital encontrava-se gente de todos os cantos do mundo, que já tinha feito mil ofícios diferentes e que falava das coisas mais diversas. Era uma excelente mistura com a Neurologia e nunca me aborreci.


A ver doentes com a DMJ nos Açores, com Corino Andrade e com Roger Rosenberg, imagem extraída da Tese de Doutoramento de Paula Coutinho (página 9)

A outra sorte esteve ainda ligada ao Dr. Corino. Através dele, e sempre por seu estímulo, comecei a interessar-me por doenças genéticas do sistema nervoso de relativa alta prevalência em Portugal – a polineuropatia amiloidótica familiar, depois a doença de Machado-Joseph. Se com a primeira o balanço é mitigado (quase tudo parecia já conhecido), estudar a segunda foi um privilégio, com a sua extrema variabilidade clínica, e a razão dela, e o interesse em colaborar com a sua progressiva identificação em todo o mundo. Para além do prazer da descoberta das ilhas dos Açores, todas diferentes, todas belíssimas. Feito o balanço, sou levada a constatar que fui razoavelmente afortunada – na Medicina, na Neurologia e nos sítios onde a pratiquei. Pena já ter acabado.

 

 

[“Em ocasião da abertura da exposição “Cuidar dos doentes, investigar as doenças”, realizada em homenagem à Neurologista Cambrense Doutora Paula Coutinho, no dia 26 de novembro 2014, no Museu Municipal de Vale de Cambra.”]

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